A maioria dos ouvintes do Rock pode
compartilhar um pensamento: “não se fazem mais bandas como
antigamente”. Pois é… Aproveitando o ensejo, também deixo um desabafo:
não se fazem mais desenhos como antigamente. Para quem não sabe, sou um
amante da animação. Inclusive tenho um lado de animador frustrado e uma
pós-graduação trancada no ramo, mas isso não vem ao caso. O que é
importante lembrar é o quão estamos carentes de desenhos inteligentes
atualmente. Nossas crianças, infelizmente, não são tão afortunadas
quanto aquelas que nasceram nos anos 80 e 90. Se você, como eu faz parte
desse grupo, embora não tenha tido a sorte de acompanhar a Era de Ouro
do Rock, pode encontrar consolo por ter acompanhado a Era de Ouro dos
Desenhos Animados.
Uma
das fontes mais importantes de animação inteligente dos anos 90 foi o
canal Cartoon Network. Quem cresceu naqueles anos pode sentir saudade
do Johnny Bravo, do Laboratório de Dexter e do desenho sobre o qual
falarei hoje: As Meninas Super Poderosas. Mas você me pergunta:
Andarilho, por quê, cazzo, falar de um desenho de meninas num blog de
Rock N Roll? Apesar dessa série não ser só para meninas, a resposta é
fácil: há um episódio desse desenho feito exclusivamente
para beatlemaníacos. Não acredita? Então apresento-lhe agora o episódio
“Conhecendo os Beat-Alls” (Meet the Beat-Alls, no original). Atenção: spoilers à seguir. Se você quer ver o episódio antes, clique aqui.
Antes de começar nossa viagem audiovisual
por esse desenho sensacional, vale situar o leitor que não ainda não
conhece As Meninas Superpoderosas. Essa série animada foi criada
por Craig McCraken para o Cartoon Network e dirigida por Genndy
Tartakovsky, uma das mentes mais criativas no ramo da animação atual,
também responsável pelo genial Samurai Jack. Resumidamente, a série
conta a história de três garotas criadas por um cientista que ganham
superpoderes e passam a defender sua cidade das forças do mal. Tudo isso
é apenas um pretexto para situações cômicas e inusitadas envolvendo a
luta de heróis contra vilões com muita ironia e sátiras inteligentes.
No episódio que apresentarei hoje, quatro
dos principais inimigos das Meninas resolvem se unir para destrui-las.
Antes, quando tentavam fazê-lo separadamente, nunca obtiam sucesso. Uma
vez unidos, o quarteto descobriu que é capaz de dominar o mundo. Logo
eles se auto-entitulam, os Beat-Alls (pronuncia-se igual Beatles, mas em
tradução livre seria como “Batem-em-Todos”).
Na foto acima você vê uma alusão à capa
de “With the Beatles” (1963), segundo disco do grupo inglês, com uma
foto clássica do quarteto mostrado contra a luz. Engraçado notar que é o
Macaco Louco quem faz o papel do John Lennon no desenho e é ele quem
define o nome do grupo, assim como ocorreu na história real da banda.
Logo
o grupo atinge o ápice de seu sucesso no mundo do crime. Um narrador
passa a descrever a situação atual da cidade com “garotas gritando”,
numa referência às meninas que tanto ovacionavam os Beatles em seus
shows. Na foto acima, mais uma referência ao FabFour, com a lendária
foto do disco “Abbey Road” (1969), com os quatro beatles atravessando a
rua de mesmo nome.
Se
o Macaco Louco é considerado John Lennon, o Fuzzy Confusão (esse bicho
rosa) é uma sátira ao baterista Ringo Starr. Enquanto todos os demais
integrantes soltam raios poderosíssimos nas heroínas, Fuzzy atira uma
pedra grotescamente. Apesar de simplório, esse vilão também
é essencial ao sucesso do grupo criminoso. Durante o episódio todo são
feitas piadas sobre sua capacidade no quarteto em referência à
perseguição que Ringo Starr sofreu – e ainda sofre – por ter tido ao seu
lado, outros três gênios como George Harrison, Paul McCartney e John
Lennon. Em uma das cenas em que Fuzzy atira sua pedra, o quarteto está
na sacada de um prédio, como na foto acima, um remake da capa do
primeiro disco dos Beatles, “Please Please Me” de 1963.
Uma
das cenas mais engraçadas do episódio é quando o grupo invade um show e
agride a banda que se apresentava. E quem tocava eram ninguém menos que
os Beatles verdadeiros! Macaco Louco ainda aproveita e solta uma pérola
similar à que John Lennon disse em um dos shows do grupo: “Vocês que
estão nas arquibancadas, podem ir embora. E vocês aqui da frente podem
passar as jóias”. Originalmente, Lennon disse: “Os que estão nos lugares
baratos batam palmas. Os da frente chacoalhem suas jóias”.
Mais
uma capa homenageada. Agora o terceiro disco, “A Hard Day’s Night” de
1964 ilustra o auge da beatlemania, ou o auge dos crimes cometidos pelo
quarteto do mal. Outras curiosidades ocorrem quando eles assaltam um
banco e a princesa diz: “Você diz pare, mas eu digo vai, vai, vai!”,
refrão da canção Hello Goodbye e Macaco Louco diz: “Agora me dê dinheiro, é o que eu quero”, refrão da excelente Money.
Como
as heróinas superpoderosas não estão dando conta do recado, a polícia é
chamada pra esclarecer o que se passa. Os beatlemaníacos logo irão
notar a semelhança do policial acima com o Sargento Pimenta ilustrado no
disco “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” (1967). O personagem solta
uma frase da música Help! que diz: “Socorro! Precisamos de
alguém. Socorro! Mas não é qualquer um”. O narrador desse trecho é um
repórter que encerra sua transmissão dizendo: “Será que as Meninas se
foram? O futuro ninguém pode dizer. Mas a vida continua”, dois versos
de Tomorrow Never Knows e Ob-la-di Ob-la-da, respectivamente.
Agora
vem a cena de maior deleite para os beatlemaníacos. O Professor –
criador e pai das Meninas – dá um belo discurso motivacional para que
elas criem coragem para enfrentar o quarteto. Suas falas são recheadas
de músicas dos Beatles. É quase um orgasmo sonoro pra
quem conhece bem a banda e vale a pena ser vista em sua versão original
em inglês. Algumas das canções citadas para compôr esse belo diálogo
são A Day in the Life (ele diz: “Eu li as notícias de hoje, garotas”), Yesterday (“ontem, nossos problemas pareciam tão distantes”), Eight Days a Week (“vocês não podem ficar escondidas aqui oito dias por semana”), além de I’m Only Sleeping, You Can’t do That, Lucy in the Sky With Diamonds, With a Little Help From My Friends e o conselho final com Do You Wanna Know a Secret? (“vocês querem ouvir um segredo?). Tal conselho será o responsável pela vitória das garotas.
Essa cena também é uma belíssima e engraçadíssima homenagem
a John Lennon. Quando o líder dos Beatles conheceu Yoko Ono, sua futura
esposa, ele disse que foi fisgado por ela em uma mostra de arte
organizada pela artista japonesa. A arte que chamou atenção do músico
foi uma escada, por onde a pessoa subia e encontrava uma lupa pendurada
no teto. Com a ajuda da lupa era possível ler a palavra “Sim” impressa
no teto. Lennon disse que ler essa palavra foi essencial para que ele
se apaixonasse por Yoko. No nosso desenho em questão, a frase que Macaco
lê no teto é: “Isso é um assalto”. Obviamente, o vilão se apaixona de
imediato por Moko Jono e solta a frase: “Preciso ter você em minha vida”
(Got to Get You Into My Life). Logo o Macaco avisa os colegas
que, a partir dali, sua companheira fará parte do grupo – ato semelhante
realizado por John e um dos fatores definitivos na futura ruptura da
banda. Um dos planos de Moko Jono é fazer o grupo deitar numa cama no
meio de um cruzamento para atrapalhar o trânsito, ato que ela chama de
“Crime Irritante Nº9″, em alusão à bizarra canção Revolution 9 do “White Album” (1968), além do famoso Bed-In realizado pelo casal em sua Lua-de-Mel.
A
macaca permanece boa parte do desenho gritando. Isso é mais uma sátira à
Yoko Ono que, ao que dizem, gravou alguns discos experimentais cheios
de gritos no mínimo curiosos – para não dizer irritantes. Nessa cena, os
gritos da macaca incomodam todos da cidade. Dentre os que sofrem com o
barulho estão os próprios Beatles, dessa vez em sua versão animada para o
filme “Yellow Submarine”, de 1968. Na foto acima, Ringo e George
tapando seus ouvidos.
Engraçado
notar também que, após conhecer sua companheira, Macaco Louco passa a
se vestir unicamente de branco, exatamente como John Lennon. Em outra
piada interessante, o Macaco tenta persuadir o grupo a roubar apenas
intens brancos, uma sátira à quase obsessão de Lennon com a cor.
Com
o Macaco apaixonado, as garotas então conseguem separar o grupo e
derrotam os outros três. O Macaco logo avista nos jornais “aqui, ali, em
todo lugar” (canção Here, There and Everywhere) que os Beatles terminaram. Quando as Meninas encontram o Macaco e sua amada é hora do golpe final. Elas chamam: “Hey Jude” e
a personagem Jude aparece, revelando-se a criadora do Zoológico,
responsável pela macaca – que é na verdade uma espiã chamada Michelle (nome
de uma canção do disco “Rubber Soul”, 1965) que ajudou a romper a união
do grupo. Aqui há espaço para, talvez, a piada mais beatlemaníaca do
episódio: uma das heróinas diz: “Michelle não é uma macaca comum, ela
também é artista e toca piano”. Nisso Jude diz em tom lamentoso: “É, mas
um dia os macacos não tocarão músicas ao piano, músicas ao piano”. A
cena acaba aí. Essa frase pode parecer totalmente desconexa, mas se
ouvida em inglês soa como: “Someday monkeys won’t play piano song, play piano song”, uma clássica piada com a canção Michelle de Paul McCartney, no trecho em que ele diz em francês: “Sont des mots qui vont tres bien ensemble, tres bien ensemble”. Tente ouvir a canção e pensar na frase em inglês. Você nunca mais escutará essa música do jeito certo!
E assim o desenho encerra-se com mais uma
vitória das Meninas Superpoderosas sobre o crime e as forças do Mal. O
narrador ainda lança um trecho de Sgt. Peppers com os
versos iniciais da música: “Eu não gostaria de encerrar o show, mas acho
que vocês gostariam de saber que mais uma vez o dia foi salvo!”
Caso você nunca tenha visto esse desenho, não hesite em clicar aqui e
assisti-lo na íntegra no Youtube. Vale a pena, mesmo que você não se
sinta mais na idade de assistir desenhos. Lembre-se que desenho, assim
como filmes e como a música, é uma arte. E arte, quando feita
com amor só faz bem ao espírito. Caso você tenha um bom nível de inglês,
é mais que recomendado que assita o episódio em seu idioma original.
E vale lembrar que, além dessas referências citadas aqui, ainda
há muitas e muitas outras – visuais e sonoras – ao longo do episódio. É
um prato cheio para qualquer beatlemaníaco ou amante do Rock!
Antes de encerrar nosso Especial vale a
reflexão: que banda na história do mundo
teria material e admiração suficientes pra receber uma homenagem desse
tipo? É por essas e outras que Beatles é insuperável. E que desenho,
hoje em dia, teria conteúdo cultural de um nível como esse? É por essas e
outras que encerro esse texto com o mesmo desabafo com que o iniciei: não se fazem mais bandas e desenhos como antigamente ;)
Sensacional!!!!!
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